Coluna de AFA NETO: ESCANDALOSAMENTE HUMANO. #LSP
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Coluna de AFA NETO: ESCANDALOSAMENTE HUMANO. #LSP

Coluna de AFA NETO: ESCANDALOSAMENTE HUMANO. #LSP

Coluna de AFA NETO: ESCANDALOSAMENTE HUMANO. #LSP


Parece-me que aquilo que chamamos de respeitabilidade se dá às custas do sacrifício da nossa mais básica humanidade. Alcançar a respeitabilidade social é um longo processo de adequação às expectativas do outro até chegarmos ao ponto de não mais nos reconhecer enquanto essência. Sacrifica-se um instinto hoje, um desejo amanhã, uma paixão semana que vem, para em seus lugares colocarmos as convenções não de alguém, mas de algo que nos domina e que não sabemos quem é. O ser humano é escandaloso em essência. É preciso domesticá-lo para que seja palatável. Da mesmíssima forma que fazemos com os animais, a sociedade faz conosco. Cachorro bom e bonito é cachorro adestrado e domesticado. Quanto mais adestrado, mais o amamos e menos cachorro ele se torna. Quanto menos adestrado mais o repudiamos e mais cachorro ele permanece. Processo idêntico ao nosso. Quanto mais domesticados, mais respeitáveis nos tornamos e mais desumanizados também. Quanto menos domesticados, menos admirados nos tornamos e mais humanos permanecemos. Dá até para parafrasear o escritor sagrado e dizer “já não sou eu quem vive, mas um outro vive em mim”. Um outro no qual não me reconheço, mas finjo que sou eu mesmo. Sem ficção, seria algo meio Almodóvar em “A Pele Que Habito”. Mas esse processo nunca é perfeito, nunca alcança êxito pleno. É como demãos de tinta sem a devida raspagem. Não conseguimos ver a cor original, mas não significa que ela não esteja lá. Está. Oculta, ofuscada, sufocada por uma outra realidade que a sobrepõe, mas ainda lá. Fazemos um grande esforço para acreditar que somos aquilo que nos tornamos, mas constantemente somos lembrados de que existe mais em você do que aquele ser aparente. Uma ranhura mais profunda na parede do seu ser e divisamos lampejos de uma tonalidade que destoa daquela da superfície. E isso perturba. Somos uma farsa. Mas não há ninguém a quem acusar. Somos nossos próprios falsificadores. Não suportamos encarar nossa originalidade. Não por ser ela feia ou coisa parecida, mas por não se ajustar à estética do meio. É que com o tempo nos condicionaram a olhar com olhos que não são os nossos. São olhos postiços; implantados em nós por aqueles que aqui estavam antes de nossa chegada. Com os novos olhos já não vemos beleza na autenticidade. Afinal de contas, a beleza, assim como a pureza, são critérios que só fazem sentido numa perspectiva geográfica. O sapato ao lado da cama não é o mesmo se colocado em cima da mesa de jantar. No primeiro caso ninguém vê inadequação. Já no segundo, se constitui em algo impuro. O impuro é aquilo que está fora do lugar. O feio é aquilo que foge à convenção. Quando o taumaturgo Galileu tocou um leproso, estendeu a mão para uma prostituta e visitou os sepulcros para dialogar com um pária, estava alterando o lugar onde as coisas tinham sido colocadas pelos religiosos dos seus dias. Lugar de leprosos era fora dos muros da cidade, lugar de prostituta era no prostíbulo ou sob as pedras atiradas pelos seus executores e lugar de um louco endemoniado era entre os sepulcros das cidades. A alteração dos lugares, pensavam, tornava feia a sociedade do primeiro século. E ninguém quer apenas sobreviver, a gente quer embelezar a vida. Afinal, “a gente não quer só comida; a gente quer comida, diversão e arte”. É curioso que os primeiros discípulos do Nazareno, quando tiveram que dialogar com seus contemporâneos, fizeram referência a uma citação da escritura hebraica, mais precisamente do profeta Isaías, que dizia que o Messias anunciado por eles “não tinha aparência nem formosura; olhamo-nos mas nenhuma beleza havia que nos agradasse”. Jesus era feio para aqueles dos seus dias. E por que era feio? Por que estava todo o tempo fora do lugar reservado para pessoas como ele. A estética religiosa havia reservado um lugar para ele, mas ele insistia em mudar a ornamentação. Por ser feio e impuro só restavam duas alternativas: colocá-lo em seu devido lugar ou, caso não fosse possível, livrar-se dele. Essa é a receita da assepsia e da estética. O sapato precisa ser retirado de cima da mesa, onde é feio e denota sujeira, e recolocado ao lado da cama, onde fica bonito e adequado. A primeira alternativa se mostrou ineficaz; ele se recusava a ocupar o lugar que lhe havia sido reservado. A solução foi a segunda alternativa: A crucificação. É essa a mesmíssima dinâmica que se repete historicamente, preservando quase sempre os atores e só mudando as biografias. Tanto lá quanto cá, os religiosos, os detentores do poder secular e os sacerdotes de Mamom insistem em decorar o mundo com zelo meticuloso. Para cada criatura debaixo do céu Deus reservou um lugar determinado para ser ocupado. E é isso que tornam as coisas belas e puras. Mas vez ou outra surge alguém que se recusa a ocupar o “seu” lugar na ordem estabelecida, tornando o mundo feio e impuro. Então precisamos lançar mão da excomunhão, da prisão e da privação para tentar recolocar cada peça em seu devido lugar. Mas se nada disso der certo, tem sempre a alternativa da crucificação. Afinal, o mundo não pode parar.

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